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29.10.2014

Viajando de trem pela Índia

Trem indiano, segunda classe | Foto por steelmonkey
Trem indiano, segunda classe | Foto por steelmonkey

 

Por Pedro Henrique Ferreira

 

Posso dizer que em uma certa fração de minha existência, participei intensamente da cultura indiana, aquele exótico país que todos têm ideia, mas que é tão distante de nossa cultura, que causa muita estranheza ao nosso imaginar.

 

Foi tendo esta ideia em mente que por um momento encontrei-me deitado numa cama desconfortável e quase espremido no teto de um vagão. Segui num trem de segunda classe, desconfortável e com indianos – nenhum turista –, e, por mais que seja um viajante mais desapegado e descolado, não quis ir na terceira classe em pé, como os indianos fazem, assim como vemos nas imagens: trens cobertos de indianos do lado de fora, em busca de um lugar ao sol. Deus me livre! Só de pensar, dá pena. E eu pensando que os ônibus do Brasil eram uns dos piores do mundo.

 

Plataforma do trem | Foto por Pedro Henrique Ferreira
Plataforma do trem | Foto por Pedro Henrique Ferreira

 

O início da minha aventura foi o trecho de Nova Delhi, na região do Rajastão, no norte da Índia, até Varanasi, a cidade mais sagrada do hinduísmo, distante quase 800km da capital. Passei por várias cidades: Jodhpur, Jaipur e Agra até chegar a Varanasi. A Índia é um país enorme, como o Brasil, e dificilmente se conhece bem em três meses.

 

A parte interna do trem era dividida em vários compartimentos, com camas e cadeiras apertadas, e enormes e ensurdecedores ventiladores de teto bem além de assombrosos. Do alto de uma destas camas observei o vai e vem dos indianos e de suas enormes famílias. Os indistinguíveis gritos de “chai, chai, chai”, o famoso chá indiano; dos vendedores misturados ao ensurdecedor barulho do roçar desconfortável entre as rodas velhas do trem antigo e os seus trilhos, que soavam perturbadores à minha curiosidade de viajante assustado.

 

O choque intenso dos sáris (roupas típicas das mulheres) coloridos das indianas contrastando com seus negros tons da pele, deixava-me confuso do que se passava por debaixo dos meus olhos atentos – essas cenas se assemelhavam àquelas fotos embaçadas com seus efeitos luminosos reluzentes.

 

Interior do trem na 2ª classe | Foto Pedro Henrique Ferreira/arquivo pessoal
Interior do trem na segunda classe | Foto Pedro Henrique Ferreira/arquivo pessoal

 

Sem contar com as ratazanas, baratas e outros bichos pelas estações, que se misturavam à agitação do terminal ferroviário. Aquele amontoado de gente dentro do vagão, num dos países mais populosos do mundo, e a barulhada me faziam desorientado e um pouco tonto, sentindo quase que uma embriaguez momentânea: aquela vontade de vomitar, mas o vômito não saia, era somente um impulso. Apesar de tudo, do balanço do trem como num barco em alto mar, graças ao bom Deus não vomitei.

 

Certamente a cena seria vergonhosa… num vagão de segunda classe onde só viajavam indianos acostumados àquela vida espiritual, desapegada dos valores ocidentais. Se eu passasse mal ali, não sei para onde iria no meio daquele nada, pois para onde eu olhava, pelas frestas das janelas do trem, havia plantações infinitas e muitos indianos em seus trabalhos braçais, plantando e colhendo o fruto do amanhã, num país longe e distante de um mundo ocidental materializado.

 

Temos muito o que aprender com os orientais. Apesar dos pesares, sobrevivi bem a esse outro planeta. Foi um choque que logo passou. Até que, depois de um tempo, já me sentia um típico indiano, tinha me adaptado à vida no trem e seguia viagem rumo ao meu encontro. Não posso deixar de lembrar de alguns detalhes nesta minha estadia pelos trens: percebi que a vida dos indianos desemboca nas estações, assim como meandros de rios na Índia, que correm até desaguar no enorme rio Ganges.

 

Gente de todos os cantos da Índia e do mundo se encontra ali – tanta aglomeração por metro quadrado que deixava meus olhos estressados do bombardeio de imagens ao mesmo tempo. Muitos em peregrinação, outros, levando cinzas de parentes para jogá-las ao Ganges, ou em visita a familiares, a turismo ou a trabalho. Pude perceber, e já era de se imaginar, que o trem é o transporte de massa mais importante – num país com dimensões continentais e onde mais de 1 bilhão de pessoas se desloca.

 

Hábitos indianos | Foto por Pedro Henrique Ferreira
Hábitos indianos | Foto por Pedro Henrique Ferreira

 

Ter muita gente em todos os cantos é uma característica dos países orientais que acaba cansando mentalmente e fisicamente. Os vendedores se misturam aos passageiros, disputando os mínimos espaços, distinguindo-se da multidão com gritos indecifráveis em hindu, aquela língua tão complexa e engraçada. Havia vendedores de tudo: quitutes indianos, roupas, zíper e até livro do Paulo Coelho. É um verdadeiro camelô a céu aberto.

 

E não havia título melhor dado ao livro de Paul Theroux, The Great Railway Bazaar (O Grande Bazar Ferroviário), que descreveu perfeitamente a vida nos trilhos em sua viagem à Ásia. Os trens na Índia são realmente um grande bazar. E, claro, a vida no trem é também um meio de se encontrar com o país, de abraçar as pessoas e a sua cultura. Definitivamente, a vida nos trilhos é tão interessante; é um mundo girando ao nosso redor. Este é um bom meio de conhecer a cultura do outro.

 

Aniquilar a nossa cultura por um momento, ser mais passivo para absorver a outra cultura ao máximo e se integrar enobrecem nossa alma e o sentido de nossa existência neste mundo – mundo este cada vez mais distante do verdadeiro ser humano em sua plenitude, o mundo do verdadeiro viajante. O melhor é deixar que nossos pensamentos viajem para um outro planeta ou galáxia, para uma viagem de autoconhecimento: um sair de si, levando, assim, nossa alma para passear – como dizia a música Bossa Nostra da grande nação Zumbi.

 

A Índia… ah, a Índia. A Índia tem aquele velho e bom ditado: “ou odeia ou ama por toda vida”. Posso dizer que sou um eterno apaixonado por essa cultura.

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